terça-feira, 5 de agosto de 2008

Os Sertões - Euclides da Cunha

A Terra

Mary Anne Junqueira, discute o termo wilderness e suas conotações para a cultura norte-americana, pinçadas a partir da revista Seleções: The Reader’s Digest. Para eles o termo significaria terra erma, selvagem, inexplorada e perigosa, simbolicamente falando, a casa da besta. Terra ignota, esta é a melhor expressão que saquei do livro de Euclides da Cunha, para visualizar a sua descrição do Sertão e talvez o melhor termo para traduzir o wilderness da Mary Junqueira. Ignota, da qual se ignora. Ignora-se no sentido exploratório, científico e culto. O sertão assusta Euclides da Cunha, que sente o terreno mais forte que o homem, selvagem ele não vê paralelos com as categorizações de Hegel.

No início do livro, fazemos uma viagem por este sertão, partindo do Centro-Sul do Brasil, onde

“desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas” (Da Cunha, 2003, p. 26)

De São Paulo, passamos por Minas Gerais, seguindo o curso do Rio São Francisco para finalmente desembocarmos na Bahia. O autor faz uma descrição geológica e geográfica, falando do solo, das formações topográficas e do clima.

Dentre as formações orográficas, Euclides destaca a Favela e o Monte Santo, locais de reunião das expedições militares ruma à Canudos. Locais estratégicos pela proximidade de Canudos, imposição de relevo e tinham o clima um pouco mais ameno pela ação dos ventos reinantes intermitentes, bem como pela presença do rio Vaza Barris, local onde mais tarde veremos, foi edificada Canudos.

O clima é duro e insalubre para o ser humano. Com uma amplitude térmica que vai dos 35º durante o dia, oscilando para noites e madrugadas frias, solo incapaz de reter calor. A descrição das primeiras chuvas é algo sufocante. Após grandes ondas de calor, surgem as primeiras chuvas, que nem tocam o solo, são tragadas pelo ciclo da evaporação e realimentam as nuvens cumulus, para despencarem novamente. Ciclo claustrofóbico e seco.

Como que antecipando uma preocupação ambiental, Euclides apresenta uma hipótese sobre a seca, onde coloca o sertanejo como principal culpado pelas secas, apresentando as técnicas de cultivo e aragem do solo. Euclides chega a dar receita para o fim das secas, tomando o exemplo dos romanos e dos franceses, demonstrando novamente uma “fé positiva” a ponto de Euclides dar a receita para o fim das secas, tomando o exemplo dos romanos e dos franceses, homens ditos civilizados, contra os sertanejos, produtos do meio selvagem que vivem. A caatinga é única e não encontra, segundo Euclides da Cunha, paralelos nas tipificações científicas, que extrapolam o meio físico e forjam os homens que nela habitam.

A flora é um tema também explorado, ele nos apresenta o umbuzeiro

“Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros” (Da Cunha, 2003, p. 76)

uma verdadeira panacéia para a sede e a fome dos sertanejos. As favelas, plantas arbustiva, que dá frutos, confunde Euclides por apresentar

“um traço superior à passividade da evolução vegetativa...”. (Da Cunha, 2003, p. 71)

Confundo por se mostrar forte e cuidar da força do sertanejo, mesmo apresentando-se rústica e vencedora do clima e das condições onde vive. Planta que tem orvalho refrescante, mas ao mesmo tempo queima abrazadora com suas folhas. Desfilando ainda a descrição dos juazeiros, mandacarus e xiquexiques, apresentando suas características biológicas, bem como a forma como estes vegetais vencem as condições onde vivem. Aparentemente estas características confundem a ciência positivista euclidiana, que rotula a natureza de bárbara e rude.

A leitura feita por mim, indica uma relação de amor e ódio de Euclides com o sertão, ele o descreve de forma crua, com toda a sua rudeza e força, mas ao mesmo tempo o chama de “paraíso” e aparenta uma admiração no tom da escrita, principalmente ao descrever o fim da seca, com o tempo das chuvas e a volta do verde à caatinga. Luz, beleza e fértil, esta é a visão dos seis meses venturos, período apelidado por Euclides, por apresentar uma beleza rara e deslumbrante.

Neste contexto fica Canudos, o lugarejo onde se desenrola a trama da guerra de 1896-1897. Um lugar inóspito, estranho, tão estranho quanto o povo que lá habita, fascinante, tão diferente como sua gente. Uma forja, onde o terreno é a bigorna e o clima, o martelo inexorável, moldando o homem que é, antes de tudo, um forte.


O Homem

Neste segundo livro da obra, Euclides da Cunha faz uma longa discussão sobre a formação do povo brasileiro em sua composição racia[1]l, passando pela formação da mistura ao seu valor, desvelando, guiado pelo pensamento positivista, uma desigualdade evolutiva das raças, colocando o jagunço como uma raça de baixo estamento, em detrimento das outras. Toda esta discussão tem uma finalidade e endereço certo: tentar explicar Antônio Conselheiro.

Atavismo é o termo utilizado pelo autor do livro para se referir ao Conselheiro. Embora atavismo pelo dicionário se refira à herança de características de ancestrais remotos, para biólogos e antropólogos, o termo revela uma profundidade maior: é a involução de uma determinada espécie, ou a adoção de características de ancestrais menos evoluídos para que se posso adaptar a novas situações.

A ciência positiva novamente falha. Não sabe explicar o Conselheiro. Embora rude e com aspecto bárbaro para o recorte espaço temporal dele, mostra-se muito inteligente, sagaz e articulado. Consegue movimentar uma massa de pessoas e ao mesmo tempo é um excepcional líder. Porém, como explicar que Conselheiro, um típico sertanejo, articule de forma excepcional sua capacidade de agregar e guiar. Visionário, Euclides o taxa de louco e degenerado, produto doentio do meio atrasado onde vive. Chega a considerar que se ele vivesse em outro meio, seria apenas mais um

“...na turba dos nevróticos vulgares...”. (Da Cunha, 2003, p. 199)

Embora não o cite explicitamente, a concepção sociológica de Emile Durkheim é forte, pois para o pai da sociologia

“...o indivíduo, visto de maneira isolada, não pode ser considerado objeto ideal para o estudo da Sociologia e, portanto, um elemento inadequado para o estudo e a compreensão apropriada do conceito de “fato social”. O que realmente interessa à vertente durkheimiana é o enfoque no indivíduo inserido no contexto de uma realidade social objetiva que, encontrando-se acima dele, caracteriza-se por ser grupal e, por conseguinte, coletiva.” (QUINTANEIRO, 2002)

A todo momento isto é enfatizado por Euclides da Cunha no que se refere a Conselheiro.

Ao classificar Conselheiro como

“documento vivo do atavismo”, (Da Cunha, 2003, p. 199)

podemos fazer duas leituras da intenção do autor, uma considerar o líder de Canudos como aquele que é o legítimo homem pré-civilização, rude e selvagem, ou ainda, se considerarmos o termo ao pé da letra, aquele que foi fruto de uma regressão necessária, imposta pelo meio e com isto torna-se um forte. Assim como Darwin constata que os animais evoluem de acordo com o meio e que não é a raça mais forte que sobrevive e sim a que mais consegue se adaptar, o sertanejo, e em sua expressão máxima o Antônio Conselheiro, seria esta raça.

Ele descreve o homem brasileiro inicialmente como sendo fruto da mistura das raças negra, branca e índia, gerando o mameluco, o mulato e o cafuz. Fica claro na narrativa do autor, uma hierarquia de raças, onde a o branco é o fator aristocrático, a liga com a

“vibrátil estrutura intelectual do celta”. (Da Cunha, 2003, p. 98)

O índio leva certa vantagem ao negro, principalmente no nosso caso, pois é o elemento da terra, autóctone, consegue se adaptar melhor ao terreno e ao clima. Em obra posterior Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda explora um pouco desta visão, classificando o elemento indígena, com uma espécie de cavalheiro, similar ao português.

Voltamos ao tema do clima, nosso passeio pelo Brasil agora é dirigido a nos mantermos atentos às três divisões climáticas, destacando os climas mais amenos das regiões centro-sul e ao clima tropical do norte, iniciado a partir da Bahia, região que coincide com a localização de Canudos. Desta vez, porém, a digressão sobre as regiões climáticas tem um objetivo claro que é colocar a

“raça inferior, o selvagem bronco”, (Da Cunha, 2003, p. 114)

como dominador e vencedor deste meio, como já visto anteriormente como inóspito. Derrotando inclusive doenças. A teoria das raças volta a tona, pois mesmo considerando as misturas básicas supra citadas, a raça sertaneja é um caso único, exatamente pela sua influência externa.

A viagem prossegue, desta vez através de outra dimensão: o tempo. Agora já próximo a Max Weber, Euclides da Cunha cria tipos e os mistura com as já descritas raças, ainda na explicação da gênese do sertanejo. Fala da agitação de três séculos de Brasil, dos paulistas, não propriamente de São Paulo, mas também de mineiros e cariocas, porém dotados do que Sérgio Buarque de Holanda chamaria de tipo aventureiro, capaz de desbravar os mais longínquos recôncavos em busca de aventura e que não se ligavam muito à um determinado lugar. Diferindo, sobremaneira dos sulistas, segundo Euclides da Cunha,

“um povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteado por outros destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores...”. (Da Cunha, 2003, p. 118)

O sertão ainda seria agitado pela dominação holandesa, que forçosamente reuniu as três raças em resistência, temperando este contexto, também, pelos levantes negros, a se destacar no livro o episódio de Palmares. A predominância no norte, porém, é do elemento autóctone, principalmente do índio

“...ali existiam 2.000 brancos, 4.000 negros e 6.000 índios...” (Da Cunha, 2003, p. 125)

cita o autor ao demonstrar uma conta do início da marcha do branco pela Bahia. Aparece no livro, também, a idéia de branqueamento da raça brasileira pelos cruzamentos sucessivos e predomínio da raça mais forte, a branca. Este pensamento norteou por algum tempo a historiografia brasileira, principalmente nos primórdios do IHGB com Varnhagen. Esta tese em Sertões é corroborada pelo fato citado pelo autor de que o desaparecimento da raça indígena era muito mais pelos cruzamentos sucessivos que por uma política de extermínio. Tese, também, sustentada pela presença de outro tipo citado por Euclides da Cunha, o jesuíta, que protegia o índio, dando-lhe a ciência de ser um donatário natural da terra.

Nasce o jagunço, filho da mistura de raças, uma nova raça, forte, adaptada ao meio, parido com o sêmen paulista nas terras férteis do São Francisco, sob os auspícios dos jesuítas. Euclídes escreve o que seria uma célebre frase sobre o sertanejo que para ele é

“antes de tudo, um forte”, (Da Cunha, 2003, p. 157)

mas esta força não é sinônimo de beleza, muito pelo contrário, ele classifica o sertanejo como uma raça mais forte com os

“mestiços neurastênicos”, (Da Cunha, 2003, p. 157)

do litoral, mas como se fossem tipos

“Hércules-Quasímodo”. (Da Cunha, 2003, p. 157)

Embora o desqualifique, ainda encontra uma maneira de classificá-lo como um cavalheiro em sua armadura de couro. Novamente classifica-o em tipos, o vaqueiro trabalhador, o gaúcho e o terrível jagunço, violente, pouco heróico e guerreiro. Durante as descrições das tradições, festas como a vaquejada e a umbuzada, o que mais se destaca é a descrição da religião, pois marca um elemento importante e constitutivo da forte solidariedade mecânica da região.

Voltemos, neste ponto a Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha descreve, num segundo momento, o líder de Canudos como um homem emblemático na região. Sua descrição de como ele aparece é de um ser quase mitológico oscilando entre o profano e o sagrado, o gnóstico bronco. Tinha várias faces, intrigantes e entrelaçadas. Era profeta, sábio e líder carismático. Euclides narra a história dele, contando sua origem na família dos Maciéis, num local entre Quixeramobim e Tamboril no Ceará. A briga dos Maciéis e dos Alves. Tem reveses em sua vida, que de certa forma ficara isolada dos problemas de família, pela educação que seu pai lhe dera. O primeiro grande revés é a fuga de sua esposa com um policial, o que o leva a migrar para o sul do Ceará. Começa, então sua peregrinação pelo sertão, que segundo Euclides da Cunha é o momento onde nasce o monstro dentro dele, já com aparência assustadora, passa a pregar em função da loucura dos choques da vida.

Suas pregações lhe rendem muitos seguidores, porém, uma grande pressão da igreja. É classificado como herege. A resistência da Igreja é formal, com bases legais, mas inútil, pois o sertão e seu povo conferem a ele uma legitimidade, o que faz a pressão só aumentar, até que se vê obrigado a fazer sua hégira para o sertão, assim como os grandes profetas, Moisés em sua peregrinação pelo deserto em busca da Terra Prometida e como Maomé, que foge de Medina rumo a Meca por pressões de grupos inimigos, Antônio Conselheiro e sua gente, que neste momento já era uma turba considerável, partem em busca do grande presente de Deus.

Param e fazem porto numa fazendo, conhecida como Canudos, à beira do rio Vaza-Barris e constroem sua

“Tróia de taipa”, (Da Cunha, 2003, p. 240)

que cresce vertiginosamente por causa do afluxo de gente dos povoados próximos. Tinha uma posição estratégica privilegiada, quase totalmente circundada pelo Vaza-Barris, com formações montanhosas pelos outros lados, encimada pelo alto da Favela. Tinha uma população formada por vários tipos, de negros fugidos ao homem livre, que tinham em comum apenas a devoção que dedicavam ao seu líder, quase religiosa. Com sua força carismática, conseguiu montar uma milícia de “bandidos”, jagunços fugitivos que juraram defender seu líder em troca do perdão do mesmo. Não mais bebiam, nem cometiam crimes, viviam para servir a Canudos. Obra prima de Canudos e desejo irrefreável de Antônio Conselheiro foi o templo da cidade, após erguer igrejas em vários locais, tinha o projeto da construção da maior igreja da sua vida. Executou seu projeto, arquitetado por ele mesmo graças às experiências anteriores, com a ajuda de seu povo, que trazia materiais, empolgado com o plano do líder.

Tinham rituais formais e rígidos, como a separação em grupos para os ofícios religiosos, as rezas e o “beija” imagens, criado pelo Conselheiro. Todas estas práticas fortaleciam, sobremaneira, a solidariedade da cidade, fazendo com que a comunidade andasse uníssona.

Conselheiro pregava contra a República, mas não por razões políticas, que segundo Euclides da Cunha, eram temas não tangíveis para ele. A coroa era a legítima representante de Deus para governar o Brasil. Ele não era monarquista por convicções, mas demonizou a República. Primeiro por ter expulsado Dom Pedro II do Brasil, depois por ter aumentado os impostos e por fim, o que, na visão do Conselheiro era prova viva de que a República era a representante do Capeta, o fato de terem decretado a legalidade apenas do casamento civil

“Casamento vão fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”, (Da Cunha, 2003, p. 272)

Pelo relato de um missionário, enviado do arcebispo, temos a imagem de Conselheiro, a nítida visão do ser mitológico, com sua túnica, cabeça descoberta, barbas longas e um bordão. Até sua voz é díspar, profunda...

Este é o cenário e o início de uma guerra, sangrenta. Da vontade de um povo, contra a ciência de um governo republicano. Eles queriam sua terra, o governo, mostrar que nada atravanca o progresso. O resultado? Talvez o fim prematuro de uma experiência impar na nossa história, ouso dizer, um estado socialista em pleno sertão bahiano no século XIX.


Fonte

DA CUNHA, Euclides. OS Sertões. São Paulo: Ediouro, 2003 – (Coleção Prestigio)


Bibliografia

JUNQUEIRA, Mary Anne - Ao sul do Rio Grande (análise de Seleções do Reader´s Digest), Porto Alegre, editora da Universidade São Francisco, 2001.


QUINTANEIRO, T.; BARBOSA, M. L. de O.; OLIVEIRA, M. G. M. de. Um Toque de Clássicos. 2. ed. rev. e amp. Belo Horizonte: UFMG, 2002.


[1] A questão da existência de raças entre os seres humanos é um assunto polêmico e controverso, procurei apenas reproduzir estes termos, utilizados como base para grande parte das argumentações de Euclides da Cunha, sem me preocupar com sua validade teórica. (N. A.)

Autor: Alexandre de Oliveira

Nenhum comentário: